Textos
Introdução ao pensamento político
Atualmente, quase sempre empregamos a palavra política num sentido muito restrito, como referência a um quadro institucional do qual fazem parte o Estado, os partidos políticos, as eleições, os políticos.
Na Grécia antiga, onde se desenvolveu pela primeira vez a Filosofia política, a situação era diferente: na pólis, a prática política era cotidiana, e todos os cidadãos se viam envolvidos nos assuntos que eram de interesse comum. Atualmente, o esvaziamento da participação dos cidadãos ocorre na exata medida em que há a tendência de restringir a política ao quadro institucional. Nossa participação na política costuma ser mínima: periodicamente, votamos nas eleições. O resultado dessa situação se faz sentir: se o quadro institucional apresenta problemas (corrupção e autoritarismo, por exemplo) conclui-se que a atividade política é um “mal necessário”.
A política sempre esteve no centro da especulação filosófica, na medida em que está imbricada, por exemplo, em questões éticas. Vamos examinar a forma como esse tema foi entendido ao longo da História, tendo em vista a ideia de que não se deve “abrir mão” da política, mas, sim, pensá-la como parte integrante da existência do indivíduo e de suas escolhas éticas.
Aristóteles
Na Grécia antiga, Aristóteles e Platão se dedicaram à formulação de um pensamento político. Aristóteles dizia que todas as coisas têm uma finalidade, e a política não é uma exceção. Para ele, sua finalidade é proporcionar ao mesmo tempo justiça e felicidade, sendo, portanto, um prolongamento da ética.
A justiça resulta de atos voluntários, ou seja, depende da consciência do indivíduo. Uma cidade habitada por pessoas justas (capazes de realizar atos justos) será uma cidade onde prevalecerá a justiça. Dessa forma, a qualidade das leis da pólis depende das qualidades morais dos cidadãos.
Aristóteles afirmou que é da natureza humana viver em sociedade e, numa de suas passagens mais famosas, que “o homem é um animal político”. Dessa forma, a pólis existe por natureza. Nela os homens estabelecem suas relações de amizade. A justiça é vista como inseparável da amizade, que ocorre quando os homens se desejam o bem mutuamente, de maneira espontânea e sem visar à obtenção de vantagens. Ou seja, a amizade se funda no desinteresse.
Disse Aristóteles: “sem amigos, ninguém escolheria viver” (Ética a Nicômaco).
O homem aspira à autonomia e à autossuficiência, que seriam alcançadas por meio da vida virtuosa. Porém, o único ser autônomo e autossuficiente é o primeiro motor, é Deus. Os homens podem, no máximo, tentar se aproximar da divindade, o que seria possível na amizade. Uma vez que amigos se ajudam mutuamente e sem interesses, forma-se um conjunto mais completo do que é cada indivíduo isolado. A amizade aproxima os homens da unidade, podendo ser considerada um atributo divino que possuímos. Nesse sentido, a pólis expressa politicamente a ordem natural do universo (Kosmos). As diversas formas de governo, conforme analisadas por Aristóteles, devem refletir o interesse pelo bem comum, que pode ser alcançado pelo governo de um só (monarquia), de um grupo (aristocracia) ou do povo (democracia). Porém, cada uma dessas formas pode sofrer um desvio, não cumprindo sua finalidade e transformando-se, respectivamente, em: tirania, oligarquia e demagogia.
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As palavras e as coisas ( por Josué Cândido da Silva )
A relação entre as palavras e as coisas é objeto de um longo debate na filosofia. Seriam os nomes que damos aos seres meras convenções ou seriam eles naturais e inerentes aos seres? Poderíamos chamar as mesas de cadeiras e as cadeiras de mesas, por exemplo?
Muitos povos antigos consideravam o nome como parte indissociável do seu ser. O nome seria tão parte da pessoa como suas mãos ou pés. Assim, o nome adquiria muitas vezes um caráter sagrado, cabendo ao indivíduo honrá-lo e defendê-lo. Ainda hoje, em muitas religiões, realizam-se ritos que tentam atingir uma pessoa através da manipulação do seu nome.
Entre os cristãos, era comum mudar de nome após converter-se ao cristianismo como símbolo de uma nova vida. Existem pessoas que acreditam que falando o nome da coisa a estamos chamando, como quando se fala da morte, por exemplo. Há outras que acreditam que não se deve falar de pessoas mortas.
Será que o nome da pessoa é parte de sua identidade ou poderíamos ter um nome diferente que isso não faria diferença? As pessoas se parecem com o nome que têm? Ou há pessoas que têm nomes que não combinam com elas?
Platão
Um diálogo interessante de Platão (428-347 a.C.) sobre o assunto aparece no "Crátilo". Platão inicia esse diálogo com uma discussão entre dois personagens: Crátilo e Hermógenes. Crátilo afirma que Hermógenes não deveria se chamar assim, já que "Hermógenes" significa "filho de Hermes" e para fazer jus a esse nome, Hermógenes deveria ser uma pessoa rica e não estar em dificuldades financeiras, como era o caso do personagem.
Hermógenes, no diálogo, defende a posição do convencionalismo, isto é, que os nomes não têm nenhuma relação com as coisas e são completamente arbitrários, podendo ser mudados segundo a nossa vontade. Já Crátilo defende a posição naturalista de que a cada coisa corresponde o seu nome e conhecer o nome significa saber o que a coisa é.
Platão defende uma posição intermediária. Ele irá reconhecer que existe certo grau de convencionalismo, pois a mesma coisa pode ser chamada por nomes diferentes nas diversas línguas. Por outro lado, as pessoas não poderiam ficar trocando o nome das coisas à vontade, porque, nesse caso, a linguagem se tornaria impossível.
Ordem das coisas
Existe um limite para o convencionalismo, pois as palavras devem significar a essência daquilo que representam. Mesmo que as palavras variem de uma língua para outra, em cada uma delas a palavra sempre representa a essência daquilo que ela nomeia. Ela é um instrumento para representar a ordem das coisas.
Assim como existe uma ordem nas coisas, existe uma ordem na linguagem, que é tão mais verdadeira quanto melhor representar a ordem das coisas. Por isso, é necessária uma crítica da linguagem para que ela se torne mais fiel como instrumento para dar expressão à ordem natural das coisas. Tal tarefa cabe ao dialético, responsável por criar os nomes e fazer com que a palavra possa exprimir em sons a idéia correspondente à essência da coisa.
Contrariamente à posição de Platão, o filósofo inglês Guilherme de Ockham (1285-1349) é um dos principais defensores da doutrina conhecida como "termismo" ou "nominalismo". Segundo Ockham, o nome ou o termo "faz as vezes" do objeto na proposição. Ele apenas substitui a coisa real, mas ele mesmo não tem nada a ver com a coisa que designa, é apenas uma convenção que empregamos para nos referirmos às coisas.
Abstração
Somente os objetos singulares são reais. Como o número de palavras é limitado e o de objetos, infinito, uma mesma palavra acaba tendo de designar um grande número de objetos. Quanto maior o grupo de objetos que a palavra designa, mais abstrata ela se torna e mais vaga também. Por exemplo, eu posso ter uma idéia muito clara de quem seja André ou Maria, mas a idéia de "humanidade" já não é tão viva em nossa mente. Disso se conclui que as palavras se prestam melhor para se referir às coisas concretas e não para representar a essência (se é que ela existe), como pensava Platão.
Os termos abstratos seriam apenas construções de nosso intelecto, não estando de forma alguma nas coisas. Ou seja, as coisas não têm uma essência a ser simbolizada através do termo, nós é que atribuímos uma essência para elas através do processo de abstração.
Convenção versus essência
Percebemos determinadas características nas coisas e estabelecemos uma relação de semelhança entre elas. Por exemplo, que determinados animais têm penas, bicos e são bípedes e os chamamos de aves. Essas características comuns estão presentes nos indivíduos singulares e nós as abstraímos formando uma idéia geral que se aplica a um grupo de indivíduos.
A "ave" em si, porém, não existe. O que existem são patos, galinhas e canários concretos dos quais chegamos à idéia geral de ave. O único modo de saber se essa abstração é uma idéia verdadeira ou não é confrontá-la com o objeto real que ela pretende representar.
Muitos outros filósofos se envolveram no debate sobre se a relação entre as palavras e as coisas é puramente convencional ou a expressão da essência das coisas. Um deles, Pedro Abelardo (1079-1142), colocou o problema nos seguintes termos: se todas as rosas do mundo desaparecessem, o nome "rosa" ainda assim continuaria tendo significado? Por trás dessa questão se esconde a secreta relação entre as palavras e as coisas, além da teimosa recusa da linguagem em ser mero veículo de expressão dos objetos ou das idéias dos sujeitos
Filosofia da linguagem (1)
Da Torre de Babel a Chomsky
Josué Cândido da Silva*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
O lingüista Noam Chomsky
O surgimento da linguagem é um fato fundamental na história humana. Não seria possível a organização dos seres humanos em sociedade sem a linguagem e vice-versa. Isso indica que a linguagem e a vida em sociedade devem ter surgido praticamente ao mesmo tempo. É difícil determinar qual a origem da linguagem, pois não há muitas pistas a seguir.
As primeiras explicações sobre a origem da linguagem têm seus fundamentos na religião. Deus teria dado a Adão uma língua e a capacidade de nomear tudo o que existe. Haveria apenas uma língua, em que cada palavra teria apenas um significado. Mas como explicar a diversidade das línguas?
Torre de Babel
Na Bíblia, o Gênesis conta que "o mundo inteiro falava a mesma língua, com as mesmas palavras" (Gn 11,1). Os homens resolveram, porém, criar uma cidade com uma torre tão alta que chegaria a tocar o céu e os tornaria famosos e poderosos. Então Deus, para castigá-los, fez com que ninguém mais se entendesse e os homens passaram a falar línguas diferentes.
Assim, os construtores da torre se dispersaram e a obra permaneceu inacabada. A diversidade das línguas surge como forma de evitar a centralização do poder. A cidade dessa história bíblica ficou conhecida como Babel, que significa "confusão".
Rousseau e o 'grito da natureza'
O filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) supôs que a linguagem humana teria evoluído gradualmente, a partir da necessidade de exprimir os sentimentos, até formas mais complexas e abstratas. Para Rousseau, a primeira linguagem do homem foi o "grito da natureza", que era usado pelos primeiros homens para implorar socorro no perigo ou como alívio de dores violentas, mas não era de uso comum.
A linguagem propriamente dita só teria começado "quando as idéias dos homens começaram a estender-se e a multiplicar-se, e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais íntima, procuraram sinais mais numerosos e uma língua mais extensa; multiplicaram as inflexões de voz e juntaram-lhes gestos que, por sua natureza, são mais expressivos e cujo sentido depende menos de uma determinação anterior". (Jean Jacques Rousseau, "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens").
Já o filósofo e psicólogo americano George Herbert Mead (1863-1931), contrariamente a Rousseau, afirmava que a linguagem gestual precedeu a linguagem falada. A necessidade de combinarem certos gestos para coordenarem suas ações durante as caçadas ou fugas de outros animais levou os homens a desenvolverem certos gestos comuns que se repetiam.
Mead e a experiência comum
Nesse processo, a comunicação se torna possível pelo fato dos indivíduos adotarem o mesmo significado para um gesto evocando uma vivência anterior do próprio indivíduo. Segundo Mead, quando o gesto chega a essa situação, converte-se no que chamamos de "linguagem", ou seja, um símbolo significante que representa certo significado.
Com o passar do tempo, esse conjunto de gestos significantes dá lugar a formas mais elaboradas de linguagem, compondo um universo de discurso. Nesse estágio, o sentido já não é articulado apenas tendo por base a interiorização das expectativas de ação do outro. Há uma sofisticação da comunicação, que se torna possível pelo fato dos indivíduos adotarem o mesmo significado para o objeto dentro deste universo de discurso.
"Esse universo de discurso é constituído por um grupo de indivíduos que conduz e participa de um processo social comum de experiência e comportamento, e no qual esses gestos ou símbolos significantes têm a mesma significação, ou uma significação comum para todos os membros do grupo... Um universo de discurso é simplesmente um sistema de significados comuns ou sociais." (Mead, G., "Mind, Self and Society").
Portanto, a forma como o indivíduo organiza sua experiência é determinada em grande parte pelo universo de discurso ao qual ele pertence e conforma seu imaginário social e as formas de simbolização de sua experiência. Mas será que os limites da minha linguagem e da minha cultura são também os limites para pensar e significar a realidade?
Será que existem línguas mais apropriadas ao filosofar como o grego ou o alemão, por exemplo? Ou existiriam estruturas de pensamento universais independentes da cultura e da linguagem?
Noam Chomsky
Uma sugestiva contribuição sobre esse tema foi elaborada pelo lingüista e ativista político americano Noam Chomsky (nascido em 1928), que revolucionou a lingüística ao introduzir a relação entre o pensamento e a linguagem. Para Chomsky, a criança disporia de pouca informação da língua para aprender como a linguagem funciona. Ainda mais, se considerarmos que além de contarem com poucos estímulos, os adultos, muitas vezes, não ajudam a criança em seu aprendizado dizendo-lhes coisas sem muito sentido.
Mesmo assim, a maioria das crianças tem um domínio razoável da língua por volta dos dois anos de idade. Se considerarmos que a linguagem é um sistema bastante complexo com regras semânticas e sintáticas sutis e que o ambiente para o aprendizado da língua não é suficiente, então o que torna possível o seu aprendizado?
A explicação estaria na estrutura mental geneticamente determinada, na qual estaria fixado um conjunto de regras gerais para a utilização da linguagem, que são universais por necessidade biológica e não por simples acidente histórico, e que decorrem de características mentais da espécie.
'Gramática universal'
Chomsky define o conjunto de princípios e regras que determinam o uso da linguagem como "gramática universal". Trata-se de um sistema de princípios, condições e regras que são elementos ou propriedades de todas as línguas humanas. Esse sistema seria o resultado de um longo processo de evolução biológica, que constituiria a essência da linguagem humana.
Esta gramática universal seria, portanto, uma estrutura anterior ao aprendizado de qualquer gramática específica, pertencendo a um estágio inicial do cérebro. Ela não se identifica a nenhuma linguagem particular, mas é subjacente a todas as línguas possíveis.
Se a linguagem é aprendida a partir da interação social e por ela condicionada ou é produto da relação entre o ambiente e as estruturas mentais geneticamente herdadas é algo que ainda não podemos afirmar com certeza. Tal questão permanece guardada como um fascinante segredo sobre sua origem.
Wittgenstein e a figuração do mundo (Josué Cândido da Silva)*
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foi, sem dúvida, um dos filósofos mais influentes do século 20 e o principal responsável pela chamada virada lingüística da filosofia, movimento que colocou a linguagem no centro da reflexão filosófica, deixando de figurar apenas como um meio para nomear as coisas ou transmitir pensamentos.
Em Wittgenstein, como em Sócrates, vemos um filósofo que procura viver coerentemente com suas crenças filosóficas. Ele recusou a fortuna de sua família e trabalhou em funções humildes, como ajudante de jardineiro em um mosteiro e porteiro em um hospital.
Em sua trajetória intelectual, Wittgenstein foi capaz de realizar uma profunda revisão de sua própria teoria, a tal ponto que muitos estudiosos de sua obra filosófica a dividem em dois períodos: o "primeiro Wittgenstein", que corresponderia ao seu "Tractatus Logico-Philosophicus", publicado em 1921, e o "segundo Wittgenstein", cuja obra principal é "Investigações Filosóficas", publicada postumamente.
Embora se tratem de "dois wittgensteins", que influenciaram escolas filosóficas diferentes, a linguagem permanece o tema principal de sua reflexão e o que fornece unidade a sua obra.
Tractatus Logico-Philosophicus
No "Tractatus Logico-Philosophicus" - um conjunto de aforismos e corolários divididos de 1 a 7 -, Wittgenstein tenta romper com a visão tradicional da filosofia, que vê o mundo como um mero agregado de coisas que podem ser pensadas de modo independente umas das outras. Tal visão não é incorreta, apenas incapaz de explicar qual a relação existente entre as coisas.
As coisas, por si só, não têm sentido, pois elas ganham significado quando relacionadas com outras coisas. Da mesma forma como não conseguimos pensar em algo fora do espaço e do tempo, "também não podemos pensar em nenhum objeto fora da possibilidade de sua ligação com outros" (Tractatus, 2.0121).
Para que algo possa ter significado é preciso que apareça dentro de uma relação com outros objetos em um determinado estado de coisas. Estar ligado a um estado de coisas é, ao mesmo tempo, a condição para que um objeto possa aparecer e ser pensado.
Com as palavras acontece a mesma coisa. Elas só adquirem significado quando inseridas em uma frase, pois somente as frases podem ser consideradas verdadeiras ou falsas. Dizer, por exemplo, "cadeira" é algo que carece de complemento para se tornar uma unidade significativa. É somente quando tenho uma frase como "a cadeira está na cozinha" que posso dizer se essa proposição é verdadeira ou falsa.
Eu não poderia, porém, saber se uma frase é ou não verdadeira se ela não correspondesse à estrutura do mundo, ou seja, a ordem das coisas no mundo. Mas como a linguagem pode representar a estrutura do mundo?
Conexão entre palavras e objetos
Para Wittgenstein isso só seria possível se existisse uma correspondência entre o mundo, o pensamento e a linguagem. Dito de outra maneira, se houvesse uma correspondência entre a figuração do mundo na linguagem e o próprio mundo afigurado.
Como explica Wittgenstein, "na figuração e no afigurado deve haver algo de idêntico, a fim de que um possa ser, de modo geral, uma figuração do outro". (2.161). "O que a figuração deve ter em comum com a realidade para poder afigurá-la à sua maneira - correta ou falsamente - é a sua forma de afiguração" (2.17). Portanto, não basta que exista uma correspondência entre a palavra e a coisa designada, pois nas frases falsas também se fala sobre objetos. Caso contrário, elas não seriam falsas, mas apenas absurdas.
O que determina a verdade ou falsidade é se a conexão entre as palavras na proposição é igual à conexão entre os objetos no mundo, isto é, deve haver uma identidade entre a estrutura das coisas e a estrutura do pensamento. O que permite que a linguagem possa corresponder ao mundo é que ambos partilham da mesma forma lógica. A forma lógica é, portanto, a condição de possibilidade da afiguração.
Mas como Wittgenstein pode demonstrar isso? Como pode ele provar que pensamento, linguagem e mundo têm a mesma forma lógica? Aqui chegamos a um ponto decisivo para a filosofia: segundo Wittgenstein, isso não pode ser demonstrado, é algo que apenas se mostra. Para demonstrar aquilo que se mostra através da linguagem e do mundo seria preciso uma teoria que se referisse à totalidade do mundo e da linguagem.
Isso é, no entanto, impossível, pois quando falamos sobre o mundo já estamos dentro da forma lógica e não há como vê-la de fora. "Para podermos representar a forma lógica, deveríamos poder-nos instalar, com a proposição, fora da lógica, quer dizer, fora do mundo" (4.12). Teríamos que colocar-nos, como diziam os medievais, no ponto de vista de Deus, algo que é igualmente impossível, a menos que o próprio Deus o revelasse para nós.
Função da filosofia: esclarecer pensamentos
Daí que as investigações sobre o sentido do mundo como totalidade não é assunto para o filósofo, mas para o místico: "O sentimento do mundo como totalidade limitada é o sentimento místico" (6.45). A filosofia não tem nada a dizer sobre a forma lógica, já que a forma lógica é a condição de possibilidade de toda e qualquer figuração e não pode, ela mesma, ser afigurada. A forma lógica não se explica, se mostra, e "o que pode ser mostrado não pode ser dito" (4.1212).
Ao invés de especular sobre a totalidade do mundo e da linguagem, a filosofia deveria ocupar-se de uma função mais modesta: a de esclarecer a linguagem e ajudar a formular proposições claras. Nas palavras de Wittgenstein: "O fim da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos. (...) Cumpre à filosofia tornar claros e delimitar precisamente os pensamentos, antes como que turvos e indistintos" (4.112).
Assim, quando alguém quiser dizer algo de metafísico como "ser" ou "essência", explicar-lhe que não conferiu um significado preciso ao que diz e sugerir que ele reconstrua sua proposição. Os filósofos deveriam resignar-se ao sétimo aforismo do Tractatus que diz que "sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar".
Todavia, não deixa de ser curioso que o próprio Wittgenstein teve de se valer de proposições gerais e metafísicas para expor suas teses. Ele afirma, por exemplo, que a totalidade das proposições é a linguagem; que a proposição é uma figuração da realidade; que os limites do mundo são os limites da minha linguagem etc. Ou seja, ele não se limita ao que se mostra, mas pretende falar sobre como as coisas são em sua totalidade.
Assim, o seu Tractatus deve também ser entendido como uma pretensão de dizer algo de metafísico e, portanto, um contra-senso. Para sair dessa, Wittgenstein usa a genial analogia da escada que deve ser jogada fora após se subir por ela (6.54). A filosofia é essa escada que ele usou para descrever a estrutura lógica do mundo e da linguagem. Feito isso, sua função está praticamente encerrada e Wittgenstein, coerente com seu pensamento, preferiu mergulhar em um silêncio que durou vários anos a continuar a dizer mais contra-sensos.
"Minhas proposições" - diz Wittgenstein - "elucidam dessa maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las como contra-sensos, após ter escalado através delas - por elas - para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela.)" (6.54).
Outras leituras:
Wittgenstein, Ludwig. "Tractatus Logico-Philosophicus". Tradução e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos, São Paulo: Edusp.